A ditadura e a culinária

Numa certa época a minha escola procurou incentivar o interesse de seus alunos pela leitura de jornais. Então aos 8 ou 9 anos de idade (isso em 1982, 1983) começamos a vasculhar os periódicos para acharmos notícias interessantes que deveríamos apresentar para a classe caso nosso nome fosse sorteado. Hoje a idéia até parece boa, mas na época o resultado foi meio estranho. O problema é que não conseguíamos entender muita coisa do que estava escrito, talvez pela pouca idade ou por não ter o hábito de discutir o cotidiano. Eu raramente conseguia encontrar alguma coisa que me interessasse e me lembro bem da angústia que sentia ao me deparar com textos incompreensíveis. Por isso às vezes me socorria nas únicas tábuas de salvação que flutuavam no mar de palavras sem sentido: as receitas. Várias crianças faziam isso. A gente se reunia antes da aula e perguntava “o que você trouxe hoje?” “hoje, uma receita de brigadeiro e você?”“ ah, eu achei uma de cocada.” Como se encontrar receitas em jornais fosse a coisa mais normal do mundo! Os professores não falavam nada. Em casa nossos pais também não abriam o bico. Até tínhamos uma certa vergonha de apresentar receitas de bolo como notícia perante à classe toda, mas diante da dificuldade optávamos pelo comodismo de apenas seguir a única regra do jogo: se estava no jornal era notícia, portanto poderia ser usada.
Eu nunca mais pensei sobre isso e tinha esquecido essa história, até quando, já grande, li que na época da ditadura os jornais publicavam receitas no lugar de matérias que tinham sido censuradas. Só então entendi porque existiam tantas receitas espalhadas nos jornais! Me senti tão boba, ingênua, enganada, alienada!
Hoje até brinco que de repente meu amor pela culinária começou alí, mas na verdade sinto tristeza ao lembrar de fatos como esse. Por isso faço votos para que os brasileiros valorizem a liberdade de expressão e queiram que as receitas façam parte apenas dos cadernos de gastronomia dos nossos jornais!



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